24 horas de luz
24 horas de luz
Metros e metros de papel. Horas e horas. Dias e dias foram necessários para que Marlene Stamm capturasse, registrasse e reunisse as suas 24 horas de luz, instalação que apresenta no Centro Cultural São Paulo. Desdobradas lado a lado no espaço, forrando paredes especialmente calculadas para abrigá-las, pequenas folhas de dimensões idênticas trazem, cada uma, um minucioso desenho em aquarela e, abaixo dele, uma inscrição a lápis. São muitas as folhas. Precisamente, 1.628 aquarelas. A ordenação é cuidadosa, sistemática. Há regra e rigor. Nada parece a esmo. Exceto, talvez, as delicadas ondulações de alguns poucos papéis. Se as aquarelas representam palitos de fósforos queimados, os escritos, deduz-se logo, correspondem ao tempo de duração de cada queima, todas somando 24 horas. A luz opera tanto como um contador de tempo quanto como um medidor de espaço.
A atenção recai na minúcia de um método preestabelecido para a consecução paciente. O resultado, quantificado num espantoso número exato, termina por ressaltar o procedimento por repetição exaustiva: para cada imagem acende-se um fósforo, cronometra-se e anota-se a duração da chama, fotografa-se o carvão resultante. Só então a aquarela. Depois, unidades e desenhos são arquivados. As aquarelas juntam-se ao espaço conforme a ordem de feitura, desenrolando-se pelas quatro paredes em sentido horário.
Ali, o virtuoso domínio técnico não se converte em assunto principal do trabalho. Inegável, todavia, que a exímia habilidade da artista parece singularizar as aquarelas, e o preciosismo é tal que se percebem sombras sutilmente coloridas, ora de um lado, ora de outro, ou ainda restinhos de carvão retorcidos e lascas discretas, singelas variações. Estas variações, no entanto, servem para confirmar a exatidão do método: cada aquarela deve ser a imagem mais fidedigna possível do resultado alcançado, de modo que o tratamento supostamente particular é, antes, uma indiferente aplicação da regra. Sendo assim, muitas das ocorrências se assemelham: certas imagens ou ainda a duração das operações podem coincidir. Trata-se, afinal, de uma norma inventada para uma atividade sem função prática, que implica dosagens entre o acaso inescapável e a previsibilidade típica dos materiais industriais.
Cada fragmento é a própria testemunha de um exercício compenetrado de absorção, do transcurso de um tempo elaborado numa atividade introspectiva que parece reter e adensar ainda mais a experiência de duração. Uma espécie de marcação de tempo que é, na realidade, uma atualização de memórias por séries de registros. São 1.628 frações de acontecimentos passados saturando o espaço. Aliás, olhando bem, são 1.628 + 8. Encontram-se lá dispersas oito aquarelas com a inscrição “zero”. Talvez palitos que serão acesos, talvez os que teimaram não queimar. Sugestões de continuidade ou de pausa. Ou pequenas subversões do método. Regra e exceção, o par inseparável. Enfileiradas, todas juntas, as aquarelas sucedem-se como se estivessem num fluxo contínuo, reiterando a sensação de acúmulo temporal que tematizam. Sucessão e simultaneidade, o par improvável: reunidos naquelas delicadas superfícies, os fragmentos das 24 horas de luz comportam-se, quem sabe, como se pudessem transcorrer todos juntos, no instante em que são abarcados pelo olhar.