Antes que chegue a noite
Antes que chegue a noite
É à noite que é belo acreditar na luz.
Edmond Rostand
Marlene Stamm colocou lado a lado três belíssimas coleções de delicadezas. São aquarelas e desenhos que contam histórias e falam de memórias. Seu trabalho incessante, obstinado mesmo, conduz às mais diversas reflexões. Antes que a noite chegue haverá tempo suficiente? É preciso creditar na luz para atravessar a noite, enfrentar a escuridão para entender a claridade. No diálogo entre a artista e os diversos objetos é que a intensidade da obra acontece. Os livros empilhados dizem do tempo e da disponibilidade. Lápis e papel, das intenções. Lâmpadas, da certeza da luz e da fragilidade. Será que estarão sempre lá? Cada escolha é uma aposta e quando o insignificante se torna símbolo de uma sensibilidade profunda é estabelecida a comunhão com o espectador. Que mistérios povoam os achados, que lembranças habitam gavetas, envelopes, telegramas e dedicatórias em livros antigos? Imaginar será sempre maior do que viver. Criar uma história é procurar uma forma de equilíbrio, que cada um perceberá de acordo com seu acervo pessoal de vivências.
“O esforço que as coisas fazem para perdurar”, encanta a artista que registra a materialidade para que nada se perca. O botão de rosa seco sobre a carta, os livros de Virginia Woolf, os manuais de viagem e a gramática de japonês resistem ao descarte, à inutilidade. Tempo, memória e resistência são temas de muitas conversas. Falam do desejo de eternidade que se opõe inexoravelmente à perda e à morte. Cada traço, cada cor aplicada é um desdobrar da compreensão e ao mesmo tempo uma transformação do objeto. O olhar capta as formas, mas é a sensibilidade e a arte de Marlene Stamm que transmitem a beleza oculta em cada elemento. Um olhar amoroso que percebe muito além do que é óbvio.
Em 5 horas de luz a artista expõe o domínio da técnica apurada, da paciência, do perfeccionismo minucioso. Em 483 aquarelas Marlene cronometra os instantes de luz, o tempo da claridade. Tão efêmera a chama que só nos resta entender o que aconteceu por alguns segundos antes de tudo se apagar. O registro é do que sobrou da luz, é a memória que ficou, a lembrança do calor e das cores da chama.
Marlene Stamm dialoga com o poder intrínseco dos objetos. Interessam a ela os resíduos, os descartados, os esquecidos. Palitos de fósforo queimados não só despertam múltiplos questionamentos, como também revelam seu potencial narrativo e estético.
Isabel Sanson Portella